Nunca te lembres de quem és e de onde vens
Gérald Bronner, Les Origines - Pourquoi devient-on qui l'on est?, AUTREMENT, 2023.
Há uns anos, comecei a escrever um romance intitulado "Estirpe". A partir de flashes desagregados de uma convivência aparentemente banal entre uma mãe e as suas duas filhas, desenvolvia-se com crueza uma verdade íntima e existencial sobre as nossas origens: a ideia de que a família é a coisa mais brutal que nos pode acontecer.
Eu, de algum modo, estava convencida de que lembrarmo-nos de quem somos e de onde vimos é uma forma adequada de autocompreensão e um bom moderador de ambições desmedidas e de expectativas que é melhor não ter. Hoje não acredito nisso. Para o bem e para o mal, o nosso destino não tem estirpe, e é mais aleatório que um dia de granizo.
A premissa do ensaio de 2023 de Gérald Bronner, "Les origines - Pourquoi devient-on qui l'on est?" explica-o deste modo: durante muito tempo na nossa vida, não sabemos nada sobre as nossas origens e isso não nos preocupa. Mais tarde, quando começamos a refletir sobre o futuro, é o destino que nos inquieta, e não o caminho que nos trouxe até ali; o que nos acontecerá depois e não o que nos sucedeu antes.
Mas se, e quando, por acaso, nos deixamos envolver pela pergunta fundamental sobre a circunstância que nos pariu - quem são os nossos pais; que nos diziam os nossos avós; como éramos cuidados em idade pré-falante; que expectativas recaíam sobre o nosso percurso; que diferença fizemos na vida dos nossos pais; como fomos dominados pelo nosso contexto sociocultural, etc. - de repente, somos invadidos pela convicção de que a nossa origem é a marca fundadora da nossa existência, para a qual devemos voltar-nos, para nos compreendermos e para exigir responsabilização por parte de quem nos deixou na circunstância de sermos... assim.
Bronner ajuda-nos a afastar-nos de teorias que fazem da origem a causa primeira, capaz de iluminar retrospectivamente todas as experiências de vida. A origem, certamente, dá um impulso, mas nunca prescreve uma direção.
Na verdade, as forças e motivações (não transparentes) que constituem a potência subjetiva que guia o sujeito com a sua experiência consciente são produto de uma interação social, de certos estados mentais, conscientes ou inconscientes, e são também habilitados por uma condição primordial que ultrapassa claramente a estirpe: todos participamos num "evento transcendente", um evento de linguagem (ou um inconsciente coletivo) que acontece numa "comunidade comunicativa extensa" (Axel Honneth, 2011) que, porém, não impede a emergência de uma subjetividade do ego, onde a autonomia individual é procurada e conseguida através de um processo de individualização.
Esta construção, este processo de individualização no desenvolvimento de habilidades específicas em relação à organização da nossa própria vida em relação, tendo em conta as demandas morais do nosso contexto concreto, é a construção de uma situação pessoal, de escolhas e contrastes face ao nosso contexto.
Há, de resto, um paralelo indesmentível entre a teoria do reconhecimento pessoal de Axel Honneth e o princípio da individuação da psicanálise de Carl Jung. Em Jung, a individuação é, precisamente, o processo psicológico e intersubjetivo que acontece na relação, na qual cada um dos sujeitos de identifica a si mesmo, individualmente, no confronto daquilo que ele é em conjunto com outrem.
As nossas origens podem, certamente, funcionar como normas coletivas totais; como tendências aparentemente totais. Mas dentro dessa totalidade (anterior e pré-determinada) de caminhos é que o indivíduo realizará escolhas, aí demarcando os seus, reconhecendo-se e reconhecendo o outro, de um certo modo. Trata-se de uma construção das linhas individuais do ego "que não poderiam ser adquiridas pelos caminhos prescritos pelas normas coletivas" (C. G. Jung, 1921).