Vacinação obrigatória - Entrevista ao jornal "Wort"

É possível e legal tornar a vacinação obrigatória?
A advogada e especialista portuguesa em bioética, Ana Elisabete Ferreira, explica em entrevista ao Contacto os desafios que se colocam nos países democráticos europeus face a uma possível obrigatoriedade da vacina contra a covid-19.
Decidir a obrigatoriedade de uma vacina é uma questão complexa e ética, que evoca direitos, liberdades e garantias, os seus limites e a sua respetiva salvaguarda. No caso de vacinas novas, como as contra a covid-19, o equilíbrio entre a liberdade individual, o direito sobre o próprio corpo e a proteção da saúde pública pode ser difícil de alcançar, levando os Estados a avançar para imposições mais radicais e universais. Mas nas democracias europeias há vários caminhos para chegar até aí, e que podem produzir efeitos semelhantes.
Elisabete Ferreira, advogada doutorada em Bioética, pela Universidade Católica Portuguesa, explica, em entrevista ao Contacto, quais são os desafios, os limites e as opções que se colocam aos Estados e também aos cidadãos perante a eventual decisão de tornar a vacinação obrigatória.
Em que condições um estado de direito democrático pode decretar um tipo de medida como a vacinação obrigatória sem violar liberdades fundamentais?
Seria um contexto muito complexo e que de modo algum passaria por uma vontade do Governo. No caso do sistema jurídico português, por exemplo, quando falamos de vacinação falamos de um procedimento que é invasivo para o nosso corpo, que coloca em causa a nossa integridade física, tal como a nossa liberdade e a nossa autonomia, que são bens jurídicos, direitos, liberdades e garantias fundamentais para a Constituição portuguesa. A Constituição permite restringi-los, mas apenas nos casos que a própria prevê e apenas se for feito por lei. Ou seja, tem de ser a Assembleia da República a intervir. A Constituição portuguesa prevê que possam ser restringidos esses direitos quando outros direitos proporcionalmente superiores se colocam, por exemplo, a vida. Se científica e objetivamente nos colocassem que com uma vacinação obrigatória poderíamos salvar muitas vidas ou que a saúde coletiva dependeria de uma vacinação obrigatória, isso seria um argumento forte, a Constituição permitiria. Mas teria de ser sempre uma lei do Parlamento e que encontrasse na Constituição um fundamento para restringir a nossa liberdade de não sermos vacinados.
Caso um país decida tornar a vacina obrigatória aqueles que não querem levar podem rejeitar a decisão sem quebrar a lei?
De um modo geral, penso que isso será sempre salvaguardado. O contexto do nosso direito da saúde é um contexto muito marcado pela autonomia pessoal. E isso tem razões históricas, mas também porque os Estados-membros e não-membros da UE foram ratificando a Convenção de Oviedo - Convenção dos Direitos do Homem para a Biomedicina - que é clara neste princípio de que 'ninguém toca no meu corpo se eu não consentir' e esse tem sido um princípio que rege as leis internas dos países. Eu tenho o direito ao meu corpo, para o bem e para o mal, e para tomar decisões erradas também.
E este princípio é, por exemplo, um princípio superior ao da saúde coletiva. Porque quando falamos da saúde coletiva estamos a falar do direito de um todo que, em princípio, tem de salvaguardar também o direito individual de cada um. Obviamente que esse equilíbrio nem sempre é fácil de fazer, mas eu acredito que qualquer legislação, ainda que crie obrigatoriedades de vacinação, estas vão ser sempre indiretas, haverá sempre uma via de escape, uma via alternativa, precisamente para respeitar quem, que por alguma razão, não queira ser vacinado.
Em abril deste ano, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem deu aval à vacinação obrigatória de crianças checas contra a vontade dos pais, para efeitos de frequência escolar. O tribunal considerou que a obrigatoriedade da vacinação não violava o Artigo 8 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que estipula o direito ao respeito à vida privada.
Quando estão em causa menores, o Estado tem obrigação de os proteger, inclusivamente contra os pais. Isso acontece, por exemplo, numa cirurgia que seja essencial à vida, numa transfusão de sangue. O Estado tem o poder de retirar a autoridade parental para permitir que esse procedimento se faça. E o Tribunal dos Direitos do Homem tem seguido essa linha.
Essa decisão pode ser um exemplo para a covid-19, face a uma eventual obrigatoriedade da vacina?
A questão da covid-19 aqui é um pouco mais complexa porque entram outros fatores na equação. Não se pode exigir que a comunidade tenha o mesmo grau de confiança na vacina contra a covid-19 que tem na vacina contra a gripe, que tem décadas de experimentação científica. Tem de haver alguma compreensão para com as reservas das pessoas e da comunidade em geral. Daí que ache que os Estados irão optar por salvaguardar a liberdade individual, exceto em casos em que se torna necessário que o Estado proteja os mais vulneráveis.
Como os lares e os hospitais, por exemplo, exigindo a vacinação dos profissionais desses setores? Nesses casos, não se coloca a violação dos direitos e liberdades desses profissionais?
Eu diria que não, pelo que referi. Além disso, esses exemplos cabem na questão entre haver uma obrigatoriedade universal e haver obrigatoriedades que, no fundo, são condições, condições de acesso. Penso que vai acontecer muito assim, obrigatoriedades indiretas que, na verdade, são condições de acesso a alguma coisa. Acho que os Estados irão muito por aí, para deixar uma janela aberta para que a pessoa saia por essa janela se quiser: preferir não exercer determinadas funções, não se candidatar, não entrar em determinados locais a ser vacinado. É um exercício de liberdade e é legalmente possível.
No caso da covid-19 têm sido os certificados a criar essa obrigatoriedade indireta.
Para entrarmos em certos locais temos o certificado, mas em nome da nossa liberdade e da nossa autonomia criou-se um expediente que é ter um teste.
Que responsabilidades também pode trazer a obrigatoriedade da vacina para os próprios Estados? É possível um Estado estar sujeito ao pagamento de indeminizações no caso de haver efeitos adversos graves ou mortais associados à vacina?
Antes disso, eu colocaria primeiro a questão ao contrário. Ou seja, se criarmos uma obrigatoriedade de vacinação universal, temos de criar a respetiva sanção. O que é acontece à pessoa que não cumprir? Aquele que tem uma obrigação e não a cumpre é que poderá ser responsabilizado por isso.
Em relação à questão da responsabilização do Estado por eventuais efeitos da vacina, acho difícil porque a responsabilidade do Estado é, em regra, uma responsabilidade que depende de culpa, depende do Estado ter tido alguma intervenção direta no procedimento que leva ao dano. Tem de haver danos objetivos e tem de se provar que o Estado efetivamente fez alguma coisa para aquele dano se produzir e isso é muito difícil neste caso das vacinas. Não digo que seja impossível de acontecer, mas é realmente difícil configurar a responsabilidade nessa perspetiva. A responsabilidade sem culpa, responsabilidade objetiva do Estado está reservada para casos em que a lei expressamente o prevê.
Em princípio, havendo causalidade entre o dano que ocorreu e a toma da vacina essa responsabilidade é da empresa farmacêutica. Pode ser do Estado, se o Estado autorizou a sua colocação no mercado sem tomar as devidas precauções e se tiver sido negligente. Teríamos de ter alguma relação entre algo que o Estado fez ou deixou de fazer e deveria ter feito. Mas, em princípio, essa responsabilidade é de quem fez a vacina.
Integra a equipa de investigação do projeto da Organização Mundial de Saúde (OMS), "Responsibility for Public Health in The Lusophone World: Doing Justice in and beyond the Covid Emergency". Em que consiste exatamente este projeto?
Fizemos um consórcio de vários países do mundo lusófono [Angola, Brasil, Moçambique, Portugal e Região Administrativa Especial de Macau] e apresentámos esta candidatura à Organização Mundial da Saúde para fazer um estudo misto. Por um lado, tem um questionário a organizações sobre que medidas, e medidas não apenas sanitárias, foram tomadas para lutar contra a covid-19 nessas organizações e isso permitiu-nos ter um leque muito abrangente de respostas e de ver como é que o mundo lusófono lidou com questões como a testagem, a vacinação. E também teve um outro questionário a entidades quase todas estaduais em que se perguntava que alterações legislativas mais relevantes surgiram com a pandemia. Com isso este estudo permitiu fazer um acervo muito grande, que está disponível online, de legislação do mundo lusófono relacionada com a pandemia.
Que conclusões se destacaram deste projeto?
Por um lado um grande empenho de todos os estados lusófonos no combate à pandemia. Não é que seja surpreendente, mas é interessante constatar...
Mesmo no Brasil, onde a gestão política tem sido alvo de tantas críticas?
Sim. Curiosamente, o "Brasil-Estado" pode dizer-se que pecou muito gravemente no combate à pandemia, mas o "Brasil-instituições de saúde" salvou muito [essa gestão]. O Brasil tem enormes instituições de pesquisa na área da saúde pública e isso, de facto, fez toda a diferença no processo de vacinação, de testagem, etc. E teve instituições muito empenhadas em combater a pandemia, mesmo sem apoio do Estado, inclusivamente contra aquilo que seria a posição deste.
Outra nota é que as instituições académicas acabaram por ter um papel fundamental em todos os países lusófonos. As universidades, os institutos públicos tiveram um papel muito importante em toda a gestão da vacinação, com o empenho que colocaram, quer através de voluntariado, quer da sua dinâmica científica, no esclarecimento e no chegar ao máximo de pessoas possível para implementarem estas medidas no terreno.