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1848-2018: o que fizemos pelos doentes mentais?

31-12-2017

Comemoramos em 2018 os 170 anos da criação do primeiro hospital psiquiátrico português, Rilhafoles. É possível estabelecer diferentes períodos da primeira evolução dos cuidados com doentes mentais em Portugal: de 1848, com a criação do Hospital de Rilhafoles, até 1945, desenrola-se o período de hospitalização psiquiátrica. 1945 é o ano da promulgação da Lei 2006 sobre a assistência psiquiátrica na qual se prevê a criação dos primeiros serviços abertos à comunidade para seguimento de doentes em regime ambulatório e domiciliário. Só na segunda metade do século XX teremos uma Lei de Bases da Saúde mental (Lei n.º 2118 de 1963) e só em 1971 os cuidados psiquiátricos serão integrados na rede de saúde pública.

A evolução da avaliação mental como doença e da inimputabilidade jurídica foi tardia em Portugal, se a compararmos com outros países da Europa. A Espanha, por exemplo, possuía hospitais para delinquentes portadores de doença mental desde 15 de Maio de 1410, por ordem do rei de Valência, Martinho, o Humano; e a Alemanha possuía, desde o século XVI, no Código de Bamberg, disposições para a redação dos exames em caso de «insânia dos culpados» e de delitos cometidos sob o presumível efeito de tóxicos ou em estado puerperal.No início do século XX, Inglaterra, França, Itália e Alemanha, e muitos outros países da Europa e da América tinham hospitais regulares para o tratamento e asilo de doentes mentais, quando em Portugal estes eram, na melhor das hipóteses, recebidos em hospitais generalistas sem as menores condições de tratamento, quando a maioria vagueava sozinho e ao acaso pelas ruas e estradas ou eram detidos nas prisões.

A preocupação social com os mais vulneráveis e desamparados não começa, evidentemente, no século XIX, e pudemos perceber variadas e relevantíssimas medidas sociais muito anteriores. Não obstante, o fulgor desta época na construção de um certo modelo de comunidade parece incomparável: a ação cada vez mais ampla das Misericórdias, o desenvolvimento dos hospitais existentes e a sua especialização, a criação de novos hospitais e instituições de saúde, a criação de casas de educação, orfanatos e abrigo de abandonados, a abolição da pena de morte, o estabelecimento definitivo da inimputabilidade penal dos «alienados», o incremento do auxílio mutualista ou a criação de seguros sociais obrigatórios são exemplos de como a comunidade, o Estado e o direito se envolveram progressiva-mente na construção de uma sociedade menos desigualitária e, sobretudo, numa vivência menos penosa para os mais desamparados.

As deficiências das doutrinas psiquiátricas vigentes durante a Primeira República não puderam ser supridas no imediato. A experiência da II Guerra Mundial foi delas testemunho vivo. A situação do século XX, de ofensa profunda e de consequências irreversíveis para o Estado social é a evidência de que o caminho para a efetiva proteção dos mais vulneráveis se tornou, novamente, mais longo e tortuoso. Pela dificuldade natural que temos de ajuizar sobre o momento presente torna-se ainda mais importante, em situações de especial crise e dificuldades, olhar para o passado, perceber os seus abismos e a bondade das suas respostas.

A medicina e a consciência individual evoluíram, e é justo afirmar que estes que são porventura os mais vulneráveis de entre os vulneráveis estão hoje mais protegidos. Mas não totalmente. A atual Lei de Saúde Mental  carece absolutamente de regulamentação; essa regulamentação não tem sido prioritária. Essa inércia lembra-nos alguma coisa? O passado tão recente do tratamento dos doente mentais é tão desonroso que se torna tentador ignorá-lo no presente. Mas é por sua causa que se impõe averiguar, a todo o momento, se as medidas que hodiernamente promovemos não serão, porventura, expedientes de que, em breve, nos envergonharemos, e lamentaremos profundamente.

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